Direito Digital

Adultização Infantil no Brasil: Desafio Jurídico entre Proteção e Regulação de Redes Sociais

Ruth Moniélly
16 de setembro de 2025
1 min
Adultização Infantil no Brasil: Desafio Jurídico entre Proteção e Regulação de Redes Sociais

MONIÉLLY, Ruth

Em meio ao clamor midiático provocado pelas denúncias do influenciador digital Felca, o Brasil depara-se com um debate urgente: até que ponto a adultização infantil deve ser combatida e qual é o papel do Direito nesse enfrentamento? A questão extrapola o moralismo circunstancial; exige precisão conceitual, responsabilidade política e crítica das engrenagens econômicas que sustentam a lógica de exposição. Se a infância é, como sustenta a doutrina da proteção integral, uma condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, o que fazemos quando a arquitetura das plataformas, desenhada para maximizar atenção e monetização, apressa esse desenvolvimento? A resposta jurídica não pode ser um dique improvisado diante de uma maré algorítmica; precisa ser projeto, não reação.

Adultização infantil não é mera antecipação de códigos estéticos do mundo adulto; é uma perda de mediações. Quando a criança performa desejos que não são seus, mas do mercado, do olhar parental ou de audiências anônimas, desloca-se a fronteira entre experimentação lúdica e exploração simbólica. O “sharenting” ilustra essa ambivalência: há pais que compartilham afetos e memórias, e há cadeias de monetização que transformam a imagem do filho em ativo. A pergunta incômoda é: quem lucra, quem decide e quem suporta os custos psíquicos e sociais dessa exposição? Ao mesmo tempo, reduzir o fenômeno a roupas e coreografias é simplista; a adultização também é semântica e afetiva, quando roteiros, legendas e enquadramentos colocam a criança na posição de objeto de desejo, ainda que disfarçado de “entretenimento”.

O Direito brasileiro, com o ECA como núcleo e a LGPD como nova camada, oferece ferramentas que, se articuladas, desenham um caminho consistente. O reconhecimento da criança como sujeito de direitos, com prioridade absoluta, convoca não apenas a repressão a condutas tipificadas nos arts. 240 e 241 do ECA, mas a prevenção, a responsabilização compartilhada e o cuidado institucional. A LGPD, ao exigir o tratamento de dados de crianças baseado no melhor interesse e consentimento parental qualificado, toca o ponto cego do ecossistema: cada curtida, vídeo salvo e perfil segmentado é dado. De que vale a proibição formal da exploração se a economia do dado infantil segue circulando para sustentar publicidade e recomendação? A proteção precisa atingir o desenho do sistema, não apenas os “conteúdos extremos”.

As investidas legislativas recentes, estimuladas pelo caso Felca, evidenciam a tensão entre a urgência de agir e o risco de legislar sob comoções. Medidas que punem a exposição sexualizada são necessárias, mas quando mal calibradas podem deslizar para um moralismo punitivo que, historicamente, recai de modo desigual sobre meninas, sobretudo negras e periféricas, reforçando vigilâncias sobre corpos e expressões culturais. O alvo normativo não deve ser a estética da infância, mas a exploração e a lógica de rentabilização que a sustenta. A fronteira entre proteção e tutela autoritária é sutil; ela se atravessa quando o Estado troca políticas de cuidado por censura difusa, quando responsabiliza indivíduos sem tocar os incentivos que organizam a plataforma.

É aqui que o debate sobre regulação de redes sociais precisa abandonar dicotomias simplistas. Não se trata de censurar a internet, mas de impor deveres de cuidado proporcionais ao risco sistêmico. O que significa, concretamente, “medidas razoáveis” de prevenção? Significa governança algorítmica com padrões de segurança por design para contas de menores, restrição de recomendação de conteúdo sexualizante a perfis identificados como infantis, relatórios públicos auditáveis sobre moderação e denúncias, e canais céleres de remoção com prioridade para violações envolvendo crianças. Em outras palavras, deslocar a responsabilidade do clique individual para o desenho da infraestrutura, reconhecendo que a plataforma é coautora do contexto de dano quando organiza incentivo e visibilidade.

Mas seria ingenuidade reduzir a resposta à engenharia do feed. A adultização é também um problema de trabalho infantil invisibilizado. Crianças que vivem de produção de conteúdo são, muitas vezes, trabalhadoras sem contrato, sem garantias mínimas, sem direito ao descanso e ao esquecimento. O regime brasileiro já admite participação artística infantil mediante autorização judicial e contrapartidas; por que não estender esse crivo às dinâmicas de “influência”, com regras de jornada, guarda de rendimentos em contas bloqueadas e obrigação de avaliação psicossocial? A experiência internacional oferece balizas: quando regimes normativos tratam a criança-influenciadora como sujeito de direitos trabalhistas e não como extensão da persona familiar, o foco desloca-se da proibição abstrata para a proteção concreta.

Há ainda um nível cultural que o Direito não alcança sozinho. A adultização opera por símbolos, aspirações e repertórios que circulam nos territórios e nas telas. Quando a escola se omite da educação midiática, quando a publicidade segue premiando engajamento a qualquer custo, quando o Estado deixa de financiar políticas de cultura e esporte que ampliariam horizontes possíveis, as redes tornam-se a praça e o palco únicos. Nesse cenário, responsabilizar apenas os pais é confortável, mas insuficiente; o cuidado é uma responsabilidade social distribuída, que envolve conselhos tutelares capacitados para o digital, Ministério Público com expertise tecnológica, defensores e psicólogos em rede, e parcerias com organizações que já atuam em segurança online. Sem tecido institucional, a lei vira slogan.

Cabe também problematizar o lugar da própria imprensa e do debate público, frequentemente capturados por pânicos morais. Há diferença entre denunciar violações e alimentar uma espiral de linchamento performativo que reencena a espetacularização do corpo infantil. Exposição para condenar exposição é contradição ética. A maturidade democrática do debate se mede pela capacidade de nomear estruturas, algoritmos, publicidade, economia da atenção, sem demonizar culturas juvenis nem reproduzir vieses de classe e raça. O Direito, quando bem orientado, estabelece limites protetivos; a política pública, quando bem desenhada, oferece alternativas; e a sociedade, quando bem informada, negocia seus valores sem sacrificar direitos.

Por isso, o caminho regulatório mais promissor não está em leis que descrevem comportamentos indesejáveis com tipificações elásticas, mas em marcos que operam sobre obrigações de meios e resultados verificáveis: transparência assimétrica (plataformas prestando contas ao poder público e à sociedade), auditorias independentes com foco em proteção de crianças, padrões de verificação de idade com preservação de privacidade, desativação por padrão de recursos que ampliam risco (geolocalização, mensagens diretas abertas, duetos com desconhecidos), e mecanismos de contestação acessíveis às famílias. A linguagem do “risco sistêmico” desloca o debate para o que importa: como o desenho técnico produz consequências sociais, e como mitigá-las sem silenciar.

A adultização infantil, enfim, exige uma gramática de proteção que não confunde cuidado com controle. O Brasil possui um arcabouço normativo robusto, ECA, LGPD, CDC, princípios constitucionais, e uma janela de oportunidade para atualizá-lo ao ambiente digital sem cair em atalhos repressivos. O impulso legislativo provocado pelo caso Felca é um sintoma: há demanda por respostas. Que essas respostas não se esgotem em proibições difusas, mas instituam responsabilidades claras para plataformas, anunciem limites à monetização da infância, assegurem o direito ao apagamento e à reparação, e fortaleçam políticas educativas que devolvam às crianças o tempo da infância. Proteção eficaz não reduz direitos; ela os torna habitáveis no mundo que temos, inclusive, e sobretudo, nas telas onde crescemos.

Referências - Layane Henrique. (13 ago. 2025). Entenda o que significa o termo “adultização”. Politize. Disponível em: https://www.politize.com.br/adultizacao/ - Projuris. (14 ago. 2025). Adultização infantil: denúncias de Felca e leis no Brasil. Disponível em: https://www.projuris.com.br/adultizacao-infantil-felca - Soares, D. D. (2023). A monetização da exposição infantil nas redes sociais: adultização do menor e dever de sustento familiar. UERJ. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br/handle/1/20354 - Agência Brasil. (12 ago. 2025). Câmara apresenta texto sobre adultização infantil nas redes em 30 dias. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2025-08/camara-apresenta-texto-sobre-adultizacao-infantil-nas-redes-em-30-dias - Agência Pública. (14 ago. 2025). Adultização: Efeito Felca impulsiona na Câmara projeto para proteger crianças nas redes. Disponível em: https://apublica.org/2025/08/adultizacao-efeito-felca-projeto-camara - ALPB. (12 ago. 2025). Lei Felca é aprovada para combater adultização infantil na Paraíba. Disponível em: https://al.pb.gov.br/noticias/lei-felca-e-aprovada - ALEPA. (12 ago. 2025). Bordalo propõe lei para combater a adultização infantil no ambiente digital no Pará. Disponível em: https://alepa.pa.gov.br/noticia/2025/bordalo-propoe-lei-adultizacao - ALEP-PR. (11 ago. 2025). Combate à adultização infantil é foco de projeto de lei no Paraná. Disponível em: https://www.assembleia.pr.leg.br/noticias/combate-a-adultizacao-infantil - CartaCapital. (12 ago. 2025). Os projetos de lei que Motta pode pautar após denúncia de Felca sobre ‘adultização’. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/projetos-de-lei-motta-felca-adultizacao