Psicologia
Autismo e TDAH: Diagnósticos em Alta, Entre Avanços, Exageros e Desafios Reais

O debate sobre o aumento de diagnósticos de autismo e TDAH nunca esteve tão acalorado quanto agora. Nos últimos anos, não apenas os números subiram de forma impressionante, como também surgiram discussões intensas sobre o que esses dados realmente significam. Será que estamos diante de uma verdadeira explosão de casos ou apenas enxergando com mais clareza aquilo que sempre esteve presente? A pergunta, mais do que estatística, é epistemológica: mudamos os sujeitos ou mudamos a régua? Em uma cultura que exige desempenho contínuo e vigilância sobre o comportamento, a linha entre variação humana e patologia se move com facilidade. Não surpreende, portanto, que o diagnóstico se torne, às vezes, tanto uma resposta a sofrimentos legítimos quanto um espelho das ansiedades de uma época que terceiriza ao cérebro aquilo que também é social.
No caso do Transtorno do Espectro Autista (TEA), a mudança é evidente. Em 2022, aproximadamente uma em cada 31 crianças de 8 anos nos Estados Unidos recebeu o diagnóstico, contra uma em cada 150 no início dos anos 2000. Essa evolução estatística, por si só, já chama atenção. Parte importante do movimento decorre do alargamento do espectro, com a incorporação de categorias antes separadas e a ampla difusão de triagens na atenção básica e nas escolas. Quando os critérios mudam, a lente muda; ver mais não significa necessariamente que há mais, mas que passamos a reconhecer padrões antes invisibilizados ou tratados como “excentricidades”. Ao mesmo tempo, a sensação social de que “todo mundo agora é autista” diz menos sobre a validade dos casos e mais sobre o desconforto com uma categoria que, ao ganhar nuance, desestabiliza noções rígidas de normalidade.
Entre as causas desse aumento, a substituição diagnóstica desempenha papel importante. Casos que antes eram classificados como transtornos de linguagem, dificuldades cognitivas ou distúrbios de aprendizagem agora são enquadrados no espectro autista, muitas vezes para garantir acesso a terapias, mediações escolares e direitos assegurados por políticas públicas e planos de saúde. Essa dinâmica cria o que Ian Hacking chamou de efeitos de looping: as categorias moldam práticas, as práticas moldam pessoas, e, por sua vez, realimentam as categorias. Há ganhos concretos, recursos chegam a quem precisa, mas também o risco de converter uma senha de acesso em identidade clínica duradoura. Quando o código do prontuário passa a organizar a vida, não basta perguntar se o caso “fecha” critérios; é preciso indagar que mundo institucional esses critérios convocam.
Há também registros de reversão diagnóstica: crianças que inicialmente receberam o rótulo de TEA, com o passar do tempo e a evolução do desenvolvimento, deixam de preencher os critérios formais. Esse fenômeno merece leitura cuidadosa. Em alguns casos, a avaliação inicial foi precipitada, realizada em janelas de grande variabilidade maturacional ou em contextos de alta ansiedade familiar; em outros, as intervenções precoces alteraram o fenótipo observável, sem que isso apague traços ou necessidades de suporte. Se o neurodesenvolvimento é processual, o diagnóstico não pode ser tratado como fotografia imutável. A aposta, aqui, deve ser longitudinal: menos certezas instantâneas, mais observação contextual e revisitação ética do que se nomeou.
O risco de diagnósticos equivocados cresce ainda mais quando se considera a sobreposição de sintomas com outros transtornos, especialmente o TDAH. Desatenção, inquietude, dificuldades sociais e impulsividade são fenômenos pluricausais e sensíveis ao contexto: sono irregular, estresse crônico, luto, bullying, insegurança alimentar, ambientes pedagógicos ruidosos, tudo isso pode modular o comportamento de forma significativa. A psiquiatria de categorias tende a transformar traços em transtornos; abordagens dimensionais lembram que intensidade, duração e prejuízo funcional precisam ser atravessados pela pergunta: em qual ambiente, diante de quais demandas e com quais suportes? Sem essa triangulação, confundimos o eco do contexto com a voz do cérebro.
A exposição prolongada a telas durante a infância entra nesse quadro como fator de atenção. Estudos sugerem que o ambiente digital pode afetar o ritmo da linguagem, o contato visual e o engajamento social, especialmente quando substitui interações responsivas e brincadeiras abertas. Não se trata de demonizar tecnologia nem de reduzir comportamentos complexos a um único vilão, mas de reconhecer que vivemos uma ecologia da atenção distinta da de décadas atrás. Se a criança é imersa num fluxo contínuo de estímulos velozes e recompensa imediata, que lugar resta para a tolerância ao tédio, para a negociação social, para o jogo simbólico? Profissionais responsáveis indagam trajetórias de uso, rotinas familiares e condições de vida antes de transformar sinais em sentenças diagnósticas.
Outro elemento crítico é o fenômeno conhecido como diagnostic overshadowing. Quando um rótulo ocupa todo o quadro, dores crônicas, ansiedade, depressão, alterações sensoriais específicas, distúrbios do sono ou problemas gastrointestinais são lidos como “parte do transtorno”, e não como condições que exigem cuidado próprio. Esse obscurecimento tem dupla face: impede o tratamento adequado e cristaliza uma narrativa monolítica do sujeito. A clínica ganha densidade quando suporta a complexidade: um mesmo indivíduo pode ser autista e ter déficit de ferro, pode ter TDAH e sofrer por luto não elaborado. Sem essa abertura, o diagnóstico vira uma explicação total, e, por isso mesmo, insuficiente.
As discussões também se acirram quando entram em pauta supostos fatores ambientais. Pesticidas, poluentes, aditivos alimentares e toda sorte de vilões circulam com força retórica nas redes, muitas vezes sem a robustez metodológica necessária. O episódio das vacinas ilustra como a ânsia por causalidades simples pode produzir danos persistentes, mesmo diante de refutações reiteradas. Isso não significa abdicar da investigação ambiental, mas recuperar a prudência científica: correlações frágeis, amostras enviesadas e mecanismos biológicos não demonstrados pedem mais pesquisa e menos alarme. Em temas que mobilizam medo, a qualidade da evidência é parte do cuidado.
Diante desse panorama, o desafio não está apenas em diagnosticar mais, mas sim em diagnosticar melhor. Avaliações criteriosas combinam história detalhada, observações em múltiplos contextos, instrumentos validados e, sobretudo, escuta qualificada de quem convive com a criança. Nenhum protocolo substitui a sabedoria de cotejar relatos familiares, registros escolares e vídeos do cotidiano, nem a humildade de reconhecer áreas cinzentas e limites da própria expertise. A decisão diagnóstica é também um ato ético: implica consequências terapêuticas, escolares, afetivas e identitárias que pedem parcimônia e transparência.
Mais do que números e estatísticas, a discussão envolve a vida real de milhares de pessoas. Para quem de fato se encontra dentro do espectro ou convive com TDAH, o diagnóstico correto abre portas: adaptações curriculares, manejo ambiental, terapias baseadas em evidências, pertencimento a comunidades que nomeiam experiências. Para quem recebe um rótulo equivocado, ele pode significar anos de intervenções desnecessárias, estigmas silenciosos e o apagamento de outras dores. Entre a autodefinição online e a avaliação clínica existe um espaço de discernimento que precisa ser protegido, sem desautorizar vivências, sem ceder à pressa classificatória.
Se a sociedade deseja avançar, será preciso abandonar tanto o ceticismo generalizado quanto a pressa de rotular. Investir em formação profissional, reduzir desigualdades de acesso, qualificar as triagens e criar fluxos de reavaliação periódica fortalece a confiança pública e reduz erros. Famílias precisam ser parceiras do processo, não apenas informantes; escolas, mais do que demandantes de laudos, devem tornar-se ambientes responsivos à diversidade de perfis atencionais e sensoriais. Manter a ciência como base é crucial, mas ciência aqui inclui método e também postura: abertura à revisão, comunicação clara de incertezas e compromisso com a singularidade.
O verdadeiro progresso não estará em vencer a próxima curva estatística, e sim em produzir encontros clínicos que reconheçam a diferença sem fetichizá-la e que ofereçam suporte sem transformar cada variação em patologia. Talvez o horizonte seja menos o de diagnosticar cada vez mais e mais cedo, e mais o de compreender melhor, com vagar, com contexto, com responsabilidade. Só assim preservaremos a dignidade de cada pessoa, evitando que diagnósticos se convertam em modismos ou em atalhos institucionais, e permitindo que o cuidado acompanhe a complexidade do humano que, teimosamente, escapa a qualquer rótulo.
Referências
Centers for Disease Control and Prevention. (2025). Prevalence and characteristics of autism spectrum disorder among children aged 8 years, Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 sites, United States, 2022. MMWR Surveillance Summaries, 74(SS-2), 1–24. https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/74/ss/ss7402a1.htm Reuters. (2025, 14 janeiro). Why are autism rates rising? https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/why-are-autism-rates-rising-2025-01-14/ Economic Times. (2025, 13 fevereiro). The rise in Autism diagnoses: What's really behind the surge, and the harmful myths that still cloud our understanding. https://economictimes.indiatimes.com/magazines/panache/the-rise-in-autism-diagnoses-whats-really-behind-the-surge-and-the-harmful-myths-that-still-cloud-our-understanding/articleshow/121312298.cms Australian Psychological Society. (2024). Why has everyone suddenly got ADHD? https://psychology.org.au/about-us/news-and-media/aps-in-the-media/2024/why-has-everyone-suddenly-got-adhd PMC. (2018). Screen media exposure and child development. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC5849631/