Direito Constitucional
Do Precedente à Coerência: A Suspeição em Lula e as Razões para a Nulidade no Julgamento de Bolsonaro

O princípio da imparcialidade judicial constitui elemento estruturante do Estado Democrático de Direito e não aparece como mera cláusula de estilo, mas como condição de possibilidade do próprio julgamento. Está consagrado no artigo 5º da Constituição Federal. Nele, os incisos XXXVII e LIII vedam tribunais de exceção e garantem julgamento por autoridade competente, o que fecha a porta a experimentos arbitrários. O Código de Processo Penal, nos artigos 252 e 254, detalha hipóteses de impedimento e suspeição, reforçando que a conduta que comprometa a neutralidade do julgador invalida os atos processuais e corrói a confiança social no resultado.
No plano internacional, a mesma premissa figura no artigo 8º, inciso 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Também está no artigo 14 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ambos ratificados pelo Brasil, o que amplia o raio de incidência dessa garantia e confere densidade normativa adicional. O dado é expressivo. O descumprimento do princípio, portanto, não atinge apenas a legalidade interna, projeta-se sobre os compromissos assumidos pelo país e tensiona a credibilidade de suas instituições.
Foi com base nesse arcabouço que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus 164.493/PR, declarou a suspeição do então juiz Sergio Moro no processo contra Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão não se sustentou em abstrações, mas em razões concretas que evidenciaram a quebra da imparcialidade, como a condução coercitiva sem prévia intimação, reconhecida como ilegal, e a interceptação com posterior divulgação de diálogos telefônicos do réu com familiares, advogados e autoridades, em afronta ao sigilo profissional e ao direito de defesa, quadro que o próprio Tribunal mapeou de modo minucioso (STF, 2021).
Somaram-se a isso a prática de atos investigativos pelo juiz, ultrapassando a função jurisdicional e assumindo papel de acusador, além de manifestações públicas reveladoras de pré-julgamento e de quebras de sigilo sem fundamentos técnicos adequados. Não se tratou de um desvio pontual, mas de um encadeamento com impacto sistêmico. Destacou-se ainda que a parcialidade não precisa ser apenas real, mas também aparente, bastando que a percepção social de falta de neutralidade contamine a legitimidade do processo, como enfatizado no debate público e acadêmico do período (InEAC, 2021). O salto merece atenção. Diante desse conjunto, concluiu-se pela nulidade absoluta, com anulação das condenações como remédio necessário à integridade do processo.
Se essa lógica estruturante orientou o caso Lula, o comparativo com o julgamento de Jair Bolsonaro revela motivos ainda mais contundentes para a anulação. Entre as críticas recorrentes, sobressai o cerceamento de defesa decorrente do prazo exíguo para exame de extenso conjunto documental, o que na prática inviabiliza a organização consistente dos argumentos e a contestação plena das provas, exemplo frequentemente apontado como afronta ao devido processo legal e ao contraditório por análises especializadas da imprensa jurídica e de juristas ouvidos no debate público.
Não é detalhe procedimental, é obstáculo ao exercício do direito de defesa. Acrescente-se a alegação de mutatio libelli, com alteração ou ampliação da acusação sem aditamento formal, em violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença, mecanismo que protege a previsibilidade do processo e a paridade de armas. Soma-se a isso a atuação expansiva do relator Alexandre de Moraes, acusado por réus de acumular funções típicas da acusação e de já figurar como parte interessada em episódios conexos, circunstância apontada como apta a comprometer sua imparcialidade e a confundir papéis que deveriam permanecer separados por razões de princípio e de prudência institucional (CNN Brasil, 2024). O dado é grave. A soma desses elementos desenha um ambiente processual vulnerado por dentro.
Outro aspecto que não pode ser minimizado é a percepção pública de parcialidade. Tal como no caso de Lula, a presença de ministros que se manifestaram criticamente contra Bolsonaro em contextos políticos ou acadêmicos acende dúvida legítima sobre a neutralidade, sobretudo quando declarações prévias sinalizam animosidade perante o réu e antecipam, de forma indireta, juízos de valor sobre o mérito.
Quando a aparência de neutralidade cede, a eficácia simbólica da jurisdição se esvai. Nesse quadro, o voto divergente do ministro Luiz Fux ganhou relevo ao enfatizar que não se vota porque se gosta ou não de alguém, mas em respeito à lei e à Constituição, advertência que ecoa como lembrete de sobriedade institucional em meio a um ambiente polarizado e ruidoso (STF, 2024). A frase funciona como contrapeso e também como alerta. Decisões movidas por simpatias ou antipatias desfiguram a função jurisdicional e aproximam o julgamento da arena política, onde a lógica é outra e os critérios são voláteis.
No plano comparativo, as razões que fundamentaram a anulação das condenações de Lula são equivalentes e, em alguns pontos, parecem superadas pelas irregularidades apontadas no caso de Bolsonaro. No primeiro contexto, reconheceu-se a parcialidade de um juiz de primeira instância, o que já foi suficiente para infirmar todo o iter processual; no segundo, a suspeição é levantada contra ministros da mais alta Corte, incumbidos de velar pela Constituição e de garantir o padrão que a magistratura nacional deve observar.
A assimetria institucional pesa. Se no caso Lula houve divulgação de interceptações e condução coercitiva ilegal, no de Bolsonaro se alega cerceamento estrutural de defesa e acúmulo de funções pelo relator, com efeitos práticos que atingem diretamente a paridade de armas. Em ambos os cenários, a percepção de parcialidade se mostra tão corrosiva quanto a parcialidade objetiva, e o STF já afirmou, em termos normativos e pedagógicos, que a aparência de neutralidade é condição de legitimidade de qualquer julgamento. O paralelo é eloquente. O risco, aqui, é de inconsistência no próprio coração da jurisprudência.
A consequência dessa comparação é inequívoca: se a Suprema Corte reconheceu a nulidade absoluta no processo de Lula por violação à imparcialidade, deve aplicar os mesmos critérios ao caso de Bolsonaro, sob pena de instaurar um regime de seletividade jurídica em que direitos fundamentais oscilam conforme a identidade política do réu. Não se trata de equiparar biografias, mas de estabilizar parâmetros.
A imparcialidade não é um favor, mas um direito universal, e, quando negada, a Justiça perde legitimidade e abre caminho para crises de confiança institucional que não se resolvem com comunicados oficiais. O dado é simples e incômodo. A credibilidade das decisões depende de consistência metodológica e de autocontenção, sobretudo quando o tribunal julga atores que, no espaço público, dividem opiniões e acendem paixões. A resposta que vier a ser dada não afetará apenas um caso, afetará o padrão de futuro da jurisdição constitucional no país.
Referências Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Brasil. (1941). Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm CNN Brasil. (2024, 15 de abril). Réus por plano de golpe criticam falta de imparcialidade de Moraes no STF. Recuperado de https://www.cnnbrasil.com.br/politica/reus-por-plano-de-golpe-criticam-falta-de-imparcialidade-de-moraes-no-stf/ Gazeta do Povo. (2024, 29 de março). Atropelos jurídicos pavimentam condenação de Bolsonaro. Recuperado de https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/atropelos-juridicos-pavimentam-conndenacao-bolsonaro/ InEAC/UFF. (2021, 27 de abril). Moro através do espelho do STF: o HC 164.493/PR e a suspeição do ex-juiz. Recuperado de https://ineac.uff.br/moro-atraves-do-espelho-do-stf-o-hc-164-493-pr-e-a-suspeicao-do-ex-juiz/ Supremo Tribunal Federal. (2021). HC 164.493/PR. Inteiro teor do voto do Rel. Min. Gilmar Mendes. Recuperado de https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC164493VotoRL.pdf Supremo Tribunal Federal. (2024). Ação Penal 2668: votos e decisões. Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%A7%C3%A3o_Penal_2668