Saúde Digital

Entre benefícios e riscos: o papel da inteligência artificial e das tecnologias digitais na prática clínica

Ruth Moniélly
16 de setembro de 2025
6 min
Entre benefícios e riscos: o papel da inteligência artificial e das tecnologias digitais na prática clínica

A aplicação de inteligência artificial e tecnologias digitais em saúde avança em velocidade notável, cruzando a telemedicina com o monitoramento por wearables, mas também infiltrando-se em rotinas discretas de acompanhamento clínico e gestão de dados. Esse acoplamento entre prática e tecnologia espelha uma agenda global de ampliar cobertura, reduzir custos e elevar a qualidade do cuidado, sem que isso elimine tensões próprias do campo. Há ganhos mensuráveis em segurança do paciente, adesão terapêutica e diminuição de readmissões, como reiteram diferentes avaliações empíricas, inclusive aquelas já consolidadas em sínteses recentes (Bajwa et al., 2021; Tan et al., 2024).

O dado é expressivo. Ainda assim, permanece a exigência de olhar para além da eficiência imediata: nem todo contexto clínico suporta a mesma solução, nem toda inovação se traduz, automaticamente, em cuidado melhor. O risco de tecnossolucionismo está colocado e exige balizas públicas e clínicas. Em abrangência e escopo, o trabalho de Bajwa et al. (2021) é claro ao apontar que a IA reconfigura etapas-chave do cuidado, da análise de grandes bases à personalização de condutas e ao suporte dinâmico à decisão. O potencial transformador reside na capacidade de processar informações em tempo real e de gerar recomendações que, se bem integradas ao fluxo assistencial, podem encurtar o tempo entre suspeita diagnóstica e intervenção.

Há potência e, ao mesmo tempo, fricção. Os autores sublinham que, sem rigor regulatório, a promessa se sustenta sobre alicerces frágeis, sobretudo quando privacidade, responsabilidade e segurança jurídica permanecem parcialmente indefinidas. A pergunta sobre quem responde por erros de sistemas que orientam decisões clínicas não é trivial. O alerta é prudente e recoloca a centralidade do julgamento clínico na parceria homem-máquina.

A revisão sistemática conduzida por Tan et al. (2024), ao avaliar 29 ensaios clínicos randomizados em 16 países, reuniu evidências de que intervenções de monitoramento remoto de pacientes, definidas como Remote Patient Monitoring e abreviadas como RPM, produzem efeitos concretos: incrementam adesão medicamentosa, reforçam a segurança após a alta e melhoram mobilidade e estado funcional. Esse conjunto se soma a reduções de readmissões e de consultas ambulatoriais, o que sugere margens de otimização de custos em certos cenários. O salto merece atenção.

Porém, os impactos sobre qualidade de vida e sintomas físicos ou psicológicos mantêm-se heterogêneos, o que impede assertivas generalistas. Em parte, essa variabilidade reflete diferenças de desenho, de tecnologia e de população, mas também traduz o desafio de capturar desfechos significativos para pacientes em horizontes temporais distintos.

A pesquisa de Ghadi et al. (2025) amplia o quadro ao explorar a integração entre wearables, IA e aprendizado de máquina para acompanhamento contínuo. Ao viabilizar a coleta seriada de parâmetros fisiológicos, esses dispositivos abrem caminho para intervenções mais rápidas quando padrões se desviam, compondo uma camada preditiva que dialoga com a medicina personalizada. Há ganhos de granularidade que importam para o cuidado. Em paralelo, emergem barreiras que não são meramente operacionais: sobrecarga informacional que dificulta triagem eficiente, falta de padronização entre plataformas e a urgência de proteger dados sensíveis, como assinalam os autores. A expansão sustentável desse ecossistema supõe interoperabilidade real, protocolos de governança e investimentos em infraestrutura. O risco é concreto e exige políticas de longo prazo.

No campo da oncologia, Aziz et al. (2025) testaram sistemas de RPM mediados por IA e observaram benefícios na detecção precoce de complicações e no engajamento do paciente ao longo do tratamento. Em trajetórias terapêuticas complexas, em que eventos adversos podem se agravar rapidamente, a antecipação de sinais é diferencial clínico relevante. Ainda assim, os autores mantêm cautela: a superioridade frente ao cuidado presencial convencional não está comprovada e depende de estudos mais extensos e com maior número de participantes. Convém ser cuidadoso. Entre o entusiasmo com a capacidade de resposta e a prudência metodológica, prevalece a leitura de complementaridade, em que a tecnologia amplia o alcance da equipe sem eclipsar a relação clínica.

Ao revisar o estado da arte do RPM baseado em IA, Shaik et al. (2023) são explícitos quanto à dupla face dos algoritmos: ganhos potenciais convivem com armadilhas de falsos positivos que ansiolizam pacientes e sobrecarregam serviços, e de falsos negativos que atrasam intervenções críticas. A calibração fina entre sensibilidade e especificidade torna-se, então, questão clínica, não apenas estatística. A tensão é conhecida e pede validações contínuas em contextos reais. Em paralelo, Nasarian et al. (2023) insistem na interpretabilidade como condição de confiabilidade, já que modelos opacos corroem a transparência e dificultam a adoção, sobretudo quando médicos e pacientes demandam compreender as bases de recomendações automatizadas. Sem trilhas de auditoria e explicações inteligíveis, a confiança se desfaz.

Sob outra perspectiva, persiste o problema da desigualdade de acesso às tecnologias digitais, que pode aprofundar assimetrias em populações de baixa renda ou em áreas rurais, como já advertido na literatura (Bajwa et al., 2021). A mesma IA que expande a cobertura pode reforçar um fosso entre quem dispõe de dispositivos e conectividade e quem permanece à margem. Trata-se de um paradoxo incômodo. Some-se a isso barreiras de letramento digital, adaptações culturais insuficientes e custos indiretos de manutenção, e a promessa de universalização perde fôlego. Sem desenho de políticas públicas que enfrentem esses nós, a inovação corre o risco de beneficiar os já beneficiados.

Em síntese provisória, os achados convergem para um quadro matizado: há benefícios consistentes, sobretudo no monitoramento remoto e no seguimento de condições crônicas, com ganhos em adesão, segurança e redução de readmissões. A efetividade, porém, depende de infraestrutura estável, capacitação multiprofissional, marcos éticos claros e garantias de acesso equitativo. Os limites também estão bem demarcados, da heterogeneidade metodológica à ausência de comprovação de superioridade em determinados contextos, passando por riscos de privacidade e viés algorítmico. Sem isso, o ganho se dilui. O futuro dessas tecnologias exigirá não apenas ensaios mais robustos, mas também governança contínua e avaliação no mundo real, mantendo a centralidade do cuidado humano como critério de sucesso e não como detalhe de implementação.

Referências Aziz, F., et al. (2025). The impact of AI-driven remote patient monitoring on cancer patient outcomes. Anticancer Research, 45(2), 407–414. Recuperado de https://ar.iiarjournals.org/content/45/2/407 Bajwa, J., Munir, U., Nori, A., & Williams, B. (2021). Artificial intelligence in healthcare: transforming the practice. NPJ Digital Medicine, 4(1), 1–5. Recuperado de https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8285156/ Ghadi, Y. Y., et al. (2025). Integration of wearable technology and artificial intelligence in remote patient monitoring. Journal of Cloud Computing, 14(1), 1–22. Recuperado de https://journalofcloudcomputing.springeropen.com/articles/10.1186/s13677-025-00759-4 Nasarian, E., Alizadehsani, R., Acharya, U. R., & Tsui, K.-L. (2023). Designing interpretable ML system to enhance trust in healthcare: A systematic review. arXiv preprint. Recuperado de https://arxiv.org/abs/2311.11055 Shaik, T., Tao, X., Higgins, N., et al. (2023). Remote patient monitoring using artificial intelligence: current state, applications, and challenges. arXiv preprint. Recuperado de https://arxiv.org/abs/2301.10009 Tan, S. Y., Sumner, J., Wang, Y., et al. (2024). A systematic review of the impacts of remote patient monitoring interventions on safety, adherence, quality of life and cost-related outcomes. NPJ Digital Medicine, 7, 192. Recuperado de https://www.nature.com/articles/s41746-024-01182-w