Direito Constitucional
Quando a Imparcialidade é Posta em Xeque: A Constituição, o Devido Processo Legal e os Riscos à Democracia

A imparcialidade judicial constitui um dos pilares centrais do Estado Democrático de Direito e encontra amparo direto na Constituição Federal de 1988. No artigo 5º, afirma-se a vedação a tribunais de exceção, que funciona como barreira contra alterações ad hoc de competência e composição. Já no inciso XXXVII, consolida-se a ideia de que não haverá juízo criado para um caso específico, enquanto, no inciso LIII, estabelece-se que ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente. A garantia, aparentemente simples, é condição de possibilidade para que o julgamento se descole de interesses políticos, ideológicos ou pessoais e se prenda apenas ao direito. Em sintonia com esse desenho, o Código de Processo Penal prevê, nos artigos 252 e 254, hipóteses de impedimento e suspeição. Afastam-se, por exemplo, juízes que atuaram como advogados da parte, que mantenham inimizade manifesta ou que tenham opinado publicamente sobre o mérito. O dado é expressivo: não se trata de formalismo, mas de um arranjo que preserva a confiança coletiva e a validade do processo.
No cenário internacional, a centralidade do princípio ganha reforço normativo e também simbólico. O artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, assegura a toda pessoa o direito a ser julgada por tribunal competente, independente e imparcial, expandindo o horizonte de controle para além das fronteiras nacionais. O artigo 14 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, igualmente ratificado, reafirma o dever estatal de garantir julgamento justo e imparcial. Não é mero eco declaratório. Vincula-se o Brasil a parâmetros que permitem o escrutínio por organismos multilaterais quando tais direitos são postos em risco. A consequência prática não se limita à possibilidade de responsabilização internacional, alcança a credibilidade interna das instituições e a previsibilidade das decisões. O salto merece atenção: padrões internacionais informam, modulam e, por vezes, corrigem a prática doméstica.
É nesse quadro que os julgamentos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro têm despertado debate intenso e, sobretudo, sensível. Ao se observar a composição e a conduta dos magistrados, emergem situações que, sob a lente da teoria das nulidades, podem evidenciar ofensa direta à imparcialidade. Quando ministros que exerceram funções políticas associadas a adversários do réu assumem posição decisiva, a neutralidade passa a ser percebida como frágil, ainda que juridicamente defendida. Do mesmo modo, manifestações anteriores em entrevistas, palestras ou decisões, quando explicitamente críticas ao réu, criam um ambiente de predisposição que contamina a aparência de equidistância. A dimensão objetiva da imparcialidade entra em cena aqui, porque não basta que o julgador se declare isento; é preciso que pareça isento. Em processos de grande repercussão, esse requisito ganha peso, pois a percepção pública funciona como termômetro da legitimidade.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em casos de alta visibilidade, que a imparcialidade ultrapassa o foro íntimo do juiz e alcança o modo como a decisão é percebida pela sociedade. O precedente paradigmático é o Habeas Corpus 164.493/PR, no qual se declarou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Naquele julgamento, consolidou-se a compreensão de que o processo justo reclama não só a ausência de parcialidade subjetiva, mas a preservação da confiança objetiva no órgão julgador. O dado é eloquente, porque projeta efeitos para além do caso concreto e oferece um critério de verificação aplicável a situações análogas.
Em disputas que envolvem figuras públicas e forte clivagem política, a cautela redobra e a necessidade de afastamento em hipóteses de possível contaminação se torna mais clara. Exige-se autocontenção institucional e observância rigorosa das hipóteses de impedimento e suspeição. Entre o dever de julgar e o dever de não julgar, a linha é tênue e, por isso, merece controle atento e transparente. Nesse sentido, a imparcialidade violada não se revela apenas nos atos, mas na própria composição do colegiado. Ao se reunir para julgar um ex-presidente que polariza o país, o tribunal deveria ser ainda mais rigoroso na observância dos mecanismos de impedimento e suspeição. A ausência de tais cuidados abre espaço para questionamentos legítimos sobre a integridade do processo. Como ressalta Gomes (2020), a imparcialidade é requisito de ordem pública, de modo que sua ausência não apenas compromete a decisão, mas fere a credibilidade do próprio Poder Judiciário.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao voto e aos comentários do ministro Luiz Fux. Ao afirmar que o magistrado não deve decidir com base em simpatias ou antipatias pessoais, mas em conformidade com a lei, o ministro explicitou um princípio elementar da jurisdição. O alerta não é trivial. Em jogo, está o dever de que as razões de decidir sejam demonstráveis, controláveis e afastadas de preferências contingentes, sob pena de o método jurídico ceder ao arbítrio. Esse alerta adquire relevância no contexto atual, em que parte da sociedade entende que o julgamento de Bolsonaro foi contaminado por elementos estranhos ao direito. As palavras de Fux funcionam como uma advertência: ao se permitir que questões políticas determinem o resultado, o tribunal deixa de ser o guardião da Constituição e passa a atuar como ator político, algo que a própria Constituição, em seu artigo 2º, proíbe ao separar os poderes da República. O ponto é sensível, porque a fronteira entre juízo jurídico e preferência política, quando mal cuidada, corrói a confiança pública e rebaixa o padrão justificativo que se espera de um tribunal constitucional.
É preciso observar ainda que a imparcialidade judicial não pode ser relativizada em função de quem é o réu. O Estado Democrático de Direito se sustenta justamente porque todos são iguais perante a lei, conforme prevê o artigo 5º, caput, da Constituição Federal. A regra vale para todos. O que se espera de uma Corte é que o parâmetro de controle permaneça estável, que o tratamento processual não oscile ao sabor da biografia do acusado. A seletividade no tratamento da imparcialidade compromete a universalidade do direito e institui uma lógica de exceção, na qual adversários políticos podem ser julgados com critérios diferentes dos aplicados a aliados. A confiança nas instituições depende da coerência e da previsibilidade das decisões, e quando essas condições não são asseguradas, o próprio tecido democrático se fragiliza. Em termos práticos, previsibilidade e coerência são capital institucional; sem elas, todo resultado é visto com suspeita, ainda que juridicamente correto.
A violação da imparcialidade, portanto, não é apenas um vício processual técnico, mas uma ameaça estrutural à democracia. Quando ministros com histórico de oposição a determinada figura política participam de julgamentos decisivos contra ela, cria-se um ambiente em que a sociedade questiona se o réu foi condenado pela lei ou pela antipatia de seus julgadores. Não basta que a Justiça seja imparcial, é preciso que assim se mostre. Esse risco é agravado quando se observa que, em decisões anteriores, o mesmo tribunal reconheceu a parcialidade de magistrados por condutas semelhantes, mas deixa de aplicar a mesma lógica em casos atuais.
A memória institucional importa, e a dissonância entre o que se disse e o que se pratica enfraquece o sentido vinculante dos próprios precedentes. A seletividade interpretativa mina a confiança pública e instala uma percepção de que a Justiça opera com dois pesos e duas medidas. O salto merece atenção, porque a percepção de dupla régua é difícil de reverter depois de consolidada no imaginário coletivo.
O julgamento de Bolsonaro, ao ser conduzido nessas circunstâncias, exemplifica como a imparcialidade, princípio basilar, pode ser tensionada até seus limites. O que deveria ser um processo pautado pela estrita legalidade transforma-se em um campo de disputa política, em que a percepção de neutralidade é substituída pela narrativa de perseguição ou favorecimento. Esse deslocamento de foco do direito para a política rebaixa o debate jurídico e contamina a leitura dos fatos. Independentemente da posição ideológica de cada cidadão, é inegável que o tribunal, ao não afastar magistrados cuja suspeição poderia ser arguida, falhou em garantir o requisito da imparcialidade. Como lembra Streck (2018), sem juízes imparciais não há jurisdição legítima, apenas exercício de poder. O dado é expressivo. Recusar a profilaxia do afastamento, quando há dúvida razoável, converte um remédio processual em problema institucional e amplia a margem para contestações futuras.
Dessa forma, o caso em análise ultrapassa a figura de Bolsonaro e atinge o próprio Estado de Direito brasileiro. Se a imparcialidade judicial pode ser relativizada em processos de alta repercussão, nada impede que o mesmo se repita em julgamentos futuros contra outros atores políticos, sociais ou econômicos. A repetição tende a naturalizar o desvio, e isso é perigoso. A imparcialidade não é um favor concedido a quem se julga simpático, mas um direito fundamental de todo cidadão.
Ao violar esse princípio, o tribunal compromete não apenas o destino de um réu específico, mas a confiança da sociedade no Judiciário como um todo. A democracia, em sua essência, depende de instituições que se mantenham acima das paixões políticas, e quando essa condição é perdida, a legitimidade do sistema entra em crise. Resta, então, reafirmar com clareza os critérios de impedimento e suspeição e aplicá-los com constância, pois sem esse chão comum a promessa constitucional perde lastro.