Psicologia
Individuação e Simbolização no Transtorno do Espectro Autista: Contribuições da Psicologia Analítica

O estudo da personalidade em indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem sido marcado por leituras centradas em déficits comportamentais, o que frequentemente invisibiliza a riqueza simbólica e subjetiva desses sujeitos. A presente reflexão propõe uma abordagem distinta, fundamentada na psicologia analítica junguiana, que entende o desenvolvimento psíquico como processo de individuação, reconhecendo a legitimidade das expressões não convencionais e não verbais. Nesse horizonte, o autismo não se configura como obstáculo à formação da personalidade, mas como via singular de constituição subjetiva, cuja compreensão exige abertura a novas formas de simbolização (Oliveira et al., 2024).
A pesquisa parte da questão central: em que medida a psicologia analítica pode contribuir para compreender o desenvolvimento da personalidade em sujeitos autistas? Parte-se da premissa de que, mesmo diante de rupturas intersubjetivas e barreiras comunicacionais, os indivíduos no espectro constroem trajetórias psíquicas estruturadas, cujas manifestações se revelam em símbolos, imagens e narrativas fragmentadas. O objetivo central consiste em identificar como a escuta clínica junguiana, orientada pelo inconsciente e pela função simbólica, pode legitimar essas experiências. Para isso, o trabalho se organiza em três eixos: fundamentos da psicologia analítica, articulação com o TEA e aplicação clínica.
O primeiro eixo retoma conceitos essenciais de Jung, como Self, arquétipos e função transcendente, destacando a individuação como processo estruturante da personalidade. Diferentemente de modelos normativos, a psicologia analítica compreende o desenvolvimento como percurso não linear, sustentado por símbolos e imagens arquetípicas que emergem do inconsciente (Jung, 2013). Nesse sentido, os tipos psicológicos e funções psíquicas oferecem categorias úteis para interpretar a diversidade de manifestações dos sujeitos com TEA, reforçando que o desenvolvimento da personalidade não pode ser reduzido à adaptação comportamental, mas envolve expressão simbólica e integração psíquica.
O segundo eixo dedica-se à análise do TEA em perspectiva clínica e simbólica. O transtorno, caracterizado por variações na comunicação, nas interações sociais e em padrões de comportamento, é frequentemente descrito sob viés biomédico ou cognitivo (APA, 2013). Contudo, ao privilegiar apenas déficits, tais leituras negligenciam o potencial expressivo e subjetivo presente em manifestações aparentemente caóticas, como desenhos repetitivos, narrativas fragmentadas e interesse intenso por padrões sensoriais. A psicologia junguiana, ao valorizar imagens e símbolos, reconhece nesses sinais não simples estereotipias, mas caminhos de simbolização e integração. Assim, símbolos arquetípicos como o Herói, a Criança Divina ou o Monstro emergem como organizadores potenciais da subjetividade autista (Knox, 2011).
O terceiro eixo aborda aplicações clínicas. Técnicas como sandplay, arteterapia e imaginação ativa demonstram-se adequadas para o contexto do TEA, pois permitem que conteúdos inconscientes venham à tona por vias não verbais, respeitando a singularidade de cada sujeito. Estudos contemporâneos mostram que crianças autistas podem, nesses contextos, construir mandalas, cenários ou narrativas imagéticas que funcionam como mediadores da individuação (Lilly & McRoberts, 2024). A escuta clínica, nesse caso, exige que o terapeuta suspenda julgamentos normativos e se disponha a reconhecer formas alternativas de simbolização, abrindo espaço para que o inconsciente se expresse de maneira criativa e legítima.
Os resultados analisados sugerem que a individuação no TEA não apenas é possível, mas depende de um enquadramento terapêutico que valorize a expressão simbólica idiossincrática. Isso implica superar modelos exclusivamente adaptativos e incorporar práticas mais inclusivas e humanizadas. Nesse sentido, a psicologia analítica junguiana contribui ao oferecer instrumentos conceituais e clínicos que permitem reconhecer o sujeito autista não como déficit, mas como portador de um percurso legítimo de constituição de si. Ao deslocar o olhar do normativo para o simbólico, a clínica junguiana amplia horizontes de cuidado e promove uma escuta capaz de legitimar trajetórias singulares de individuação.
Conclui-se, portanto, que a psicologia analítica junguiana tem potencial para enriquecer a compreensão do desenvolvimento da personalidade no TEA, desde que fundamentada em escuta simbólica sensível e respeito às manifestações expressivas não convencionais. Mais do que uma alternativa terapêutica, essa abordagem representa uma exigência ética de reconhecimento da pluralidade psíquica e da dignidade subjetiva dos indivíduos autistas, contribuindo para a construção de práticas clínicas mais inclusivas, criativas e humanizadas.
Referências American Psychiatric Association (APA). (2013). DSM-5: Diagnostic and statistical manual of mental disorders. Arlington: American Psychiatric Publishing. Jung, C. G. (2013). O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes. Knox, J. (2011). Self-agency in psychotherapy: attachment, autonomy and intimacy. New York: W. W. Norton & Company. Lilly, J. P., & McRoberts, R. (2024). Jungian analytical play therapy. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/389579483_Jungian_Analytical_Play_Therapy Oliveira, A. P. C., Mion, A. B. Z., Galante, M. L., Di Donato, G., & Ventura, C. A. A. (2024). Stock, composition and distribution of the nursing workforce in Brazil: a snapshot. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 32, e4287. https://doi.org/10.1590/1518-8345.6937.4287