Direito à Saúde

A Judicialização da Saúde e a Responsabilidade do Estado no Fornecimento de Medicamentos de Alto Custo

Ruth Moniélly
16 de setembro de 2025
6 min
A Judicialização da Saúde e a Responsabilidade do Estado no Fornecimento de Medicamentos de Alto Custo

Pilar dos direitos fundamentais, o direito à saúde foi alçado pela Constituição Federal de 1988 à condição de base da dignidade da pessoa humana. Não como promessa vaga, mas como comando vinculante, nos artigos 6º e 196 afirma-se que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Com tal formulação, impõe-se ao poder público a concepção e a execução de políticas públicas aptas a assegurar acesso universal e igualitário, não como benesse, mas como obrigação. O enunciado é claro. A partir dele, o horizonte normativo se abre como ambição e se fecha como concreção, pois define fins e também modos de atuação. Exige-se, por isso, que a promessa constitucional se traduza em meios efetivos, com desenho e implementação de ações capazes de tornar real a universalidade e a igualdade previstas. Em síntese, a dignidade passa por esse arranjo: direito de todos, dever estatal, e uma arquitetura pública que dê corpo ao mandamento.

Pede desenho institucional, financiamento estável e capacidade de execução. No terreno prático, o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Sistema Único de Saúde tornou-se um dos maiores desafios do Estado brasileiro, sobretudo com a crescente judicialização, em que pacientes recorrem ao Judiciário para garantir tratamentos não contemplados nas listas oficiais. O dado é expressivo.

A construção histórica desse direito demonstra que sua efetivação está ligada à luta social e à ampliação da cidadania. Foi processo, não súbita revelação. A Reforma Sanitária recebeu impulso simbólico e político na VIII Conferência Nacional de Saúde, quando a universalização passou do discurso ao desenho institucional. A criação do SUS ocorreu em 1990 e rompeu com o modelo excludente do antigo INAMPS, alterando a lógica de acesso e redesenhando responsabilidades do Estado no campo sanitário, em chave de cidadania e não de filantropia residual (Gualberto, 2020). Persistem, porém, obstáculos de monta, combinando escassez de recursos com falhas de gestão e arranjos federativos fragmentados. Desse atrito nasce a judicialização como via alternativa para obtenção de medicamentos de alto custo, particularmente quando não incorporados às políticas vigentes. É resposta de urgência diante de carências reais.

Os medicamentos de alto custo, dirigidos muitas vezes a doenças crônicas, raras ou graves, têm preços que extrapolam a capacidade financeira da maioria. A Constituição impõe ao Estado a obrigação de fornecê-los, embora essa prestação se faça sob limites orçamentários e à luz da teoria da reserva do possível, que não elimina deveres mínimos nem legitima promessas indiferenciadas sem lastro material (Canotilho, 2017). No Judiciário, confrontam-se o mínimo existencial e a restrição de recursos, exigindo escolhas que opõem o caso individual à manutenção de políticas universais. É uma colisão de valores e de prioridades. Daí emergirem decisões por vezes díspares, revelando tanto a sensibilidade ao sofrimento concreto quanto a dificuldade de estabilizar critérios razoáveis.

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça fixaram balizas para a concessão judicial de medicamentos de alto custo, como a comprovação de hipossuficiência, a inexistência de substituto terapêutico incorporado ao SUS e a eficácia demonstrada do tratamento, numa tentativa de reduzir a heterogeneidade decisória e qualificar a tutela judicial (STF, 2020). Esses critérios funcionam como filtros e pedem robustez probatória, além de perícias confiáveis e capacidade técnica na ponta, o que nem sempre se verifica com a mesma qualidade. Quando falham, o impacto recai sobre a programação financeira. Sabe-se que parcelas expressivas do orçamento podem ser direcionadas a um número reduzido de pacientes, efeito que concentra gastos e acende alerta quanto à equidade e à sustentabilidade do sistema como um todo (Trisotto, 2019). O salto merece atenção.

A judicialização, embora seja instrumento legítimo de efetivação de direitos, apresenta efeitos colaterais relevantes. Pesquisas apontam fraudes, desigualdade no acesso e desorganização administrativa como consequências de uma atuação judicial desenfreada, incluindo casos de laudos médicos falsos, obtenção de medicamentos por indivíduos sem a doença correspondente e favorecimento de quem tem melhor assistência jurídica, o que impõe maior controle e fiscalização para resguardar o interesse público e a justiça distributiva (Alves & Duarte, 2016). Não se trata apenas de gasto. Trata-se também de confiança institucional, que se erode quando a exceção se normaliza. Além disso, o protagonismo excessivo do Judiciário tende a despolitizar o debate e a afastar a sociedade civil das discussões sobre financiamento e gestão da saúde, empobrecendo a deliberação e enfraquecendo a construção de consensos possíveis sobre prioridades coletivas (Freitas, 2017). Fica aberta uma tensão difícil de administrar.

O Estado enfrenta, portanto, o desafio de equilibrar a obrigação constitucional de fornecer medicamentos com a sustentabilidade financeira do sistema público. Houve progressos com a Política Nacional de Medicamentos e com a Lei dos Genéricos, além do Programa Farmácia Popular, que ampliaram o acesso e racionalizaram categorias de despesa, ainda que insuficientes frente à demanda crescente por terapias de altíssimo custo, cada vez mais complexas e caras (Souza et al., 2018). Adoção de critérios técnicos claros pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, com transparência nos processos e justificativas explícitas, tende a reduzir a pressão judicial e a ordenar escolhas que são, por natureza, trágicas. Fortalecer políticas de prevenção e promoção também redistribui esforços, reduz adoecimento evitável e desafoga pontos críticos da assistência. Trata-se de um avanço modesto, porém consistente.

A judicialização da saúde no fornecimento de medicamentos de alto custo expõe fragilidades do sistema, mas reforça a centralidade do direito à saúde no Estado Democrático de Direito. Ao poder público cabe investir em gestão eficiente, transparência e políticas estruturadas, garantindo acesso universal sem romper o pacto de sustentabilidade. Ao Judiciário cumpre uma atuação subsidiária e criteriosa, acionada quando a necessidade estiver demonstrada e as políticas existentes se mostrarem ineficazes, com decisões que dialoguem com parâmetros técnicos e explicitem seus custos e efeitos. A participação ativa da sociedade civil, por sua vez, legitima escolhas difíceis e disciplina expectativas, tornando o processo mais responsivo e menos opaco. No fim, a efetivação desse direito dependerá da conjugação entre responsabilidade estatal, controle judicial cuidadoso e engajamento social contínuo. A tensão permanece, governável se houver compromisso e método.

Referências ALVES, C.; DUARTE, L. Fraudes e judicialização da saúde: impactos no SUS. Revista de Direito Sanitário, v. 17, n. 2, p. 65-83, 2016. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 set. 2025. CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2017. FREITAS, L. Judicialização da saúde: dilemas e desafios. Revista Jurídica da Saúde, v. 8, n. 1, p. 112-130, 2017. GUALBERTO, J. A reforma sanitária e a universalização do direito à saúde no Brasil. Revista de Saúde Coletiva, v. 30, n. 4, p. 1105-1120, 2020. SOUZA, M.; MENDONÇA, L.; BARROSO, R. Políticas públicas de medicamentos e o acesso no Brasil. Revista Panamericana de Saúde, v. 42, e15, 2018. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Recurso Extraordinário 566.471/RN. Brasília, DF: STF, 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15319307084&ext=.pdf. Acesso em: 16 set. 2025. TRISOTTO, F. Judicialização da saúde e orçamento público: impactos do fornecimento de medicamentos de alto custo. Revista Direito e Sociedade, v. 24, n. 3, p. 55-74, 2019.