Direito Internacional

Quando a lei interna falha, a sanção externa se impõe: o que está por trás das medidas dos EUA contra Alexandre de Moraes?

Ruth Moniélly
16 de setembro de 2025
1 min
Quando a lei interna falha, a sanção externa se impõe: o que está por trás das medidas dos EUA contra Alexandre de Moraes?

MONIÉLLY, Ruth

Em um país onde as referências jurídicas se diluem e as leis parecem perder o peso de sua própria autoridade, instala-se um terreno instável em que a confiança pública se desfaz. Quando a ordem interna já não oferece equilíbrio, o campo democrático fica vulnerável ao predomínio de vontades individuais, à sombra da ideia de que um só homem pode moldar os rumos da nação. É nesse cenário de erosão normativa que a intervenção externa, embora sempre controversa, surge como instrumento de recalibração das forças, lembrando que o poder, em uma democracia verdadeira, deve ser plural, limitado e continuamente responsabilizado. Assim, a mensagem não se dirige apenas ao indivíduo alvo, mas à própria estrutura institucional, advertindo que nenhum cargo, por mais elevado que seja, pode se sobrepor à lei e à coletividade. No limite, o gesto externo funciona como um espelho incômodo: devolve às instituições a pergunta que elas evitam há anos, quem nos vigia quando os freios internos relaxam?

No dia 30 de julho de 2025, os Estados Unidos anunciaram sanções contra o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, com base na Lei Global Magnitsky, como registrou Bessent (2025). Não se trata de capricho punitivo ou ingerência travestida de princípio, mas da aplicação de um instrumento já consolidado no aparato contemporâneo de proteção a direitos humanos e combate à corrupção sistêmica. Em democracias que aspiram maturidade, soberania não é licença para impunidade, mas compromisso com padrões mínimos de accountability. A resposta internacional, nesse sentido, opera como contenção adicional quando a arquitetura doméstica vacila: um lembrete de que a autoridade estatal, onde quer que se exerça, carrega consigo a obrigação de responder por seus atos. E se a pergunta é quem define os limites, ela é devolvida em registro jurídico: o limite não é quem sanciona, é o conteúdo das condutas sancionáveis.

Segundo a própria moldura da OFAC (2025), a Lei Global Magnitsky autoriza sanções a indivíduos envolvidos em violações graves de direitos humanos. No caso de Moraes, foram apontados autoritarismo, censura, detenções arbitrárias e repressão a opositores, alegações que adquirem densidade quando lidas à luz de um processo de concentração de poder sob a capa de decisões judiciais. As medidas incluem congelamento de bens, restrição de transações e cancelamento de vistos; é verdade que o efeito patrimonial imediato pode ser limitado, como noticiado pela Reuters (2025), mas a eficácia simbólica e institucional não se mede por inventários bancários. Medidas dessa natureza deslocam a fronteira do tolerável e reintroduzem custo reputacional onde se insinuava uma normalização do excesso. Ao fim, o recado é nítido: prerrogativas não são escudos para atravessar, impunemente, as balizas dos direitos fundamentais.

A reação brasileira veio em tom veemente: o Itamaraty contestou a legitimidade do ato e reafirmou a independência do Judiciário, enquanto o governo anunciou o programa “Brasil Soberano” para mitigar impactos das tarifas de 50% sobre exportações como café, carne e celulose (AP News, 2025), em meio a uma escalada retórica que incluiu nova convocação do diplomata americano após declarações públicas (The Guardian, 2025).

Ainda assim, convém separar o ruído defensivo do núcleo do problema. Sanções como essa não procuram humilhar um país, mas reorientar padrões de conduta institucional quando os contrapesos internos mostram fadiga. Em outras palavras, não se trata de hostilizar o Brasil, mas de sinalizar que nenhum ministro, por mais alto que esteja no organograma, ocupa uma zona de excepcionalidade imune ao escrutínio. A independência judicial, quando confundida com incriticabilidade, torna-se seu oposto: licença para arbitrar.

Laís Martins (2025) e análises ligadas à Tech Policy Press têm advertido para o risco de transformar o Judiciário em eixo absoluto de controle político, movendo-o de guardião a protagonista incontestável. Wederson Marinho (2025) fala em hipertrofia institucional quando faltam contrapontos efetivos, lembrando que, sem correias de transmissão entre Poderes, o sistema respira por aparelhos. A tradição liberal, de Madison a O’Donnell, não cansa de repetir que liberdade se preserva por camadas de accountability, horizontais e verticais , e não por um centro que tudo interpreta e tudo decide. Sob esse prisma, a sanção funciona como prótese temporária de um mecanismo interno avariado: não se pretende substituir a soberania, mas impelir as instituições a reconstituir, por dentro, o equilíbrio que deixaram escapar. Se a ambição deve contrariar a ambição, como estamos garantindo o contrapeso quando a ambição veste toga?

O caso brasileiro também projeta um alerta para democracias que sofrem erosão silenciosa: quando a liturgia da legalidade se converte em retórica de legitimação do excesso, é preciso reabrir a gramática dos limites. A Lei Global Magnitsky, ao se consolidar como ferramenta de responsabilização individual, evita punir coletividades indistintas e concentra foco em decisões que atravessam a linha vermelha dos direitos. Chamar isso de ingerência é esquecer que a interdependência jurídica se tornou elemento constitutivo da ordem contemporânea. O que se põe em jogo não é a honra nacional, mas a coesão mínima das regras que sustentam a convivência democrática. De que serve invocar soberania se ela se reduz a um manto para erros que se acumulam sem revisão?

Nada disso exige demonizar pessoas ou santificar instituições; exige, sim, repactuar a hierarquia dos princípios. O gesto norte-americano não é um fim em si, mas um ponto de inflexão que convoca as instâncias brasileiras a retomarem o papel que lhes cabe: investigar, discutir, revisar, limitar, com transparência e com freios recíprocos. O Judiciário, guardião das leis, deve também submeter-se a elas, inclusive quando o verniz da legalidade parece justificar o que o espírito da democracia repele. Reequilibrar o sistema, aqui, significa relembrar que autoridade não é verticalidade sem condições, é função exercida sob controles, passível de revisão e de sanção. A pergunta que resta não é se a medida foi dura ou branda, mas se estamos dispostos a conviver com poder absoluto quando as ferramentas para contê-lo estão, clara e legitimamente, ao nosso alcance.

Referências • Bessent, J. (2025). US Treasury Sanctions Brazilian Supreme Court Justice Alexandre de Moraes. Disponível em: https://home.treasury.gov/news/press-releases/sb0211 • OFAC. (2025). Sanctions list update: Global Magnitsky designations. Disponível em: https://home.treasury.gov/policy-issues/financial-sanctions/recent-actions • Reuters. (2025). Brazilian banks scramble to understand scope of US sanctions on Supreme Court justice. Disponível em: https://www.reuters.com/legal/government/brazilian-banks-scramble-understand-scope-us-sanctions-supreme-court-justice-2025-07-31 • AP News. (2025). Brazil's Lula announces economic aid after US sanctions. Disponível em: https://apnews.com/article/1be55ee6627757ffdecfd0d3022b5f57 • The Guardian. (2025). Top US diplomat in Brazil summoned after anti-Moraes post. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2025/aug/08/brazil-us-diplomat-summoned-social-media-post-jair-bolsonaro • Marinho, W. (2025). Extraterritorial Sanctions and Judicial Accountability. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=5373930 • Martins, L. (2025). Trump’s attack on Brazil’s sovereignty may backfire on US tech firms. Disponível em: https://techpolicy.press/trumps-attack-on-brazils-sovereignty-may-backfire-on-us-tech-firms