Direito Constitucional
Regulamentação das Plataformas de Mídia Social: um confronto com a liberdade de expressão e as cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988

MONIÉLLY, Ruth
Até onde pode ir o Estado ao regular plataformas sem fraturar a cláusula de liberdade de expressão? A pergunta reaparece após o anúncio presidencial de que uma proposta será encaminhada ao Congresso. Não se trata de tema inédito, mas de uma encruzilhada institucional. O Supremo tem repelido a censura prévia, inclusive em contextos eleitorais, como se viu ao derrubar restrições ao humor político durante campanhas (STF, ADI 4451, 2010). Em chave comparada, modelos que focam processos, não conteúdos, têm sido preferidos: o Digital Services Act europeu institui obrigações de transparência, avaliação de riscos e due process para remoções, evitando listas substantivas abertas (Reg. UE 2022/2065).
O Relator Especial da ONU sobre expressão alertou para o efeito silenciador de regulações vagas, especialmente quando conjugadas a sanções severas (Kaye, A/HRC/38/35, 2018). À luz do ordenamento jurídico, é razoável concluir que uma regulação constitucionalmente adequada privilegie garantias procedimentais, publicidade algorítmica, mecanismos de recurso e supervisão por órgão independente, e que qualquer restrição de conteúdo permaneça excepcional, tipificada e sujeita a controle judicial célere.
Mas o que exatamente significa “regular” quando os intermediários já exercem poder para ordenar visibilidades, modular alcance e banir usuários? Regular a infraestrutura do debate público é muito diferente de autorizar autoridades a decidir, caso a caso, o que pode circular. A questão, portanto, não é se haverá regulação, e sim qual desenho normativo impede que ela se converta em licença para silenciar.
A Constituição Federal é clara ao determinar que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (CF, art. 5º, IX). Ao lado desse dispositivo, o art. 220 reforça a vedação à restrição da manifestação do pensamento, da criação e da informação, sob qualquer forma, processo ou veículo. O conjunto desses dispositivos está inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, o que implica proteção especial. De acordo com o art. 60, § 4º, IV, tais direitos constituem cláusulas pétreas, e não podem ser abolidos nem por emenda, muito menos por legislação ordinária. Essa blindagem não elimina responsabilidades ulteriores nem impede ponderações proporcionais; apenas interdita atalhos autoritários como a censura prévia e as restrições vagas. O desafio, aqui, é manter intacto o núcleo essencial do direito sem ceder à tentação de ampliá-lo ou contraí-lo conforme a conveniência do ciclo político.
Embora seja legítimo ao Estado combater crimes como incitação à violência, discurso de ódio e desinformação deliberada, a amplitude e a forma dessa regulamentação devem respeitar o núcleo essencial da liberdade de expressão. Uma proposta que concentre poderes nas mãos do Executivo ou de órgãos reguladores para determinar o que pode ou não ser veiculado nas redes sociais, sem critérios objetivos e controle jurisdicional adequado, tende a produzir efeitos de cerceamento indevido, aproximando-se perigosamente de uma forma velada de censura. Na gramática constitucional, isso contraria a proibição do excesso tanto quanto a proibição da proteção deficiente: não é admissível nem desamparar vítimas de abusos, nem transformar prevenção em silenciamento estrutural. Parâmetros como a taxatividade das condutas, a necessidade e a adequação das medidas, e o devido processo de moderação (com notificação, justificativa e possibilidade de recurso) não são detalhes procedimentais: são a barreira que separa política pública de arbítrio.
Do ponto de vista democrático, a regulamentação de plataformas digitais não pode se tornar instrumento de perseguição política ou de controle ideológico. A justificativa de “proteger a sociedade” não autoriza o Estado a reduzir o espaço de debate público, mesmo quando o conteúdo das manifestações seja crítico ou incômodo ao governo. Ao contrário, é justamente a proteção das vozes dissidentes que distingue um regime democrático de um regime autoritário.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao derrubar a Lei de Imprensa (ADPF 130), ao resguardar manifestações impopulares como a Marcha da Maconha, e ao repelir restrições prévias ao humor político em período eleitoral, oferece balizas nítidas: o discurso político e satírico goza de proteção reforçada. Reverter essa presunção protetiva por meio de conceitos elásticos, “conteúdo nocivo”, “desinformação” sem lastro probatório, alimenta o efeito silenciador e empobrece a esfera pública.
Em um cenário no qual a internet se consolidou como a arena predominante do debate público, impor mecanismos que fragilizem a liberdade de expressão é, para além de juridicamente inconstitucional, politicamente perigoso. Trata-se de um retrocesso civilizatório que ignora o aprendizado histórico de que a censura é sempre mais nociva à democracia do que o próprio risco de circulação de ideias controversas. A proteção da sociedade contra abusos digitais deve ser buscada por meio de educação midiática, aplicação rigorosa de leis já existentes e fortalecimento do Judiciário como instância de controle, e não pela concentração de poderes regulatórios no Executivo.
O Marco Civil da Internet, ao apostar na responsabilização ulterior fundada em ordem judicial, já ofereceu um eixo de equilíbrio; se há revisões a fazer, que incidam sobre processos e deveres de transparência, não sobre conteúdos “indesejáveis” definidos por decreto. A experiência internacional também alerta: modelos que transferem ao Estado ou a intermediários privados o dever de remoção acelerada sob pena de multas elevadas tendem a produzir overblocking, com supressão de conteúdos lícitos por puro risco regulatório. O Pacto de San José da Costa Rica consagra a proibição de censura prévia e admite apenas responsabilidades ulteriores, exigindo que qualquer restrição seja necessária, idônea e proporcional.
Esse horizonte é compatível com uma regulação sistêmica: transparência sobre algoritmos de recomendação, relatórios de risco e de moderação, acesso de pesquisadores a dados para auditoria independente, mecanismos de contestação acessíveis e prazos razoáveis, além de limites estritos a ordens de remoção massiva ou bloqueios de aplicações. Em suma, regras sobre como se modera, e não listas do que se pode dizer, com controle judicial efetivo e publicidade democrática.
Convém ainda deslocar o foco do conteúdo para a arquitetura. Plataformas não são meros espaços neutros; seus sistemas de recomendação, métricas de engajamento e incentivos econômicos moldam a conversação pública. Regular o “como”, design, governança de dados, padrões de interoperabilidade, responsabilidade por práticas de amplificação artificial, é mais coerente com a Constituição do que pretender arbitrar o “o quê”. Educação midiática, alfabetização informacional e promoção de pluralismo não são medidas suaves, mas políticas de longa duração que enfrentam causas estruturais da desinformação. Ao mesmo tempo, ordens judiciais devem ser precisas e temporalmente delimitadas, evitando bloqueios totais e remoções genéricas que, sob a retórica da urgência, corroem garantias processuais e normalizam exceções.
Qualquer proposta que implique limitação genérica ou discricionária da expressão nas mídias sociais, portanto, não apenas viola cláusula pétrea: desloca o centro de gravidade do nosso pacto constitucional, trocando a incerteza própria do dissenso por uma ilusão de ordem. É dever da sociedade civil, das instituições e da imprensa manter vigilância sobre iniciativas que, sob o pretexto de “regulamentar”, abram espaço para arbitrariedades. A liberdade de expressão não é um prêmio concedido pelo Estado, é uma prática coletiva que se aperfeiçoa no uso e na fricção. Quando submetida a controles prévios ou a critérios opacos, ela se retrai e nos empobrece; quando tutelada por processos claros, revisões independentes e responsabilidade posterior bem calibrada, ela nos dá o que a democracia exige: o direito de errar em público e a chance de corrigir em comum.
Referências Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 ago. 2025. Pacto de San José da Costa Rica. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 15 ago. 2025.